O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou a análise de ações que contestam a Lei de Anistia, a qual isentou crimes cometidos durante a Ditadura Militar que durou de 1964 a 1985. A decisão de retomar este tema, posicionando-se após anos de inatividade no julgamento, foi motivada, em parte, pelo filme Ainda Estou Aqui, indicado a três categorias do Oscar, que destaca o misterioso desaparecimento do deputado Rubens Paiva.
A concessão de repercussão geral a estes processos significa que o resultado do STF irá influenciar todos os casos similares no país. Contudo, a Corte ainda precisa decidir sobre o mérito dos recursos, ou seja, se a Lei da Anistia será revista ou não, e atualmente, não há uma data definida para essa deliberação.
Segundo especialistas consultados, a decisão de reavaliar a questão no STF foi fortemente influenciada pelo filme, que narra a história do assassinato de Rubens Paiva e os efeitos desse acontecimento trágico em sua família. Dirigido por Walter Salles e baseado no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, o filme já conquistou prêmios internacionais, incluindo o Globo de Ouro e distinções no Festival de Veneza.
O procurador Sérgio Suiama, membro do Grupo de Trabalho Justiça de Transição do Ministério Público Federal (MPF), acredita que o sucesso do longa foi um fator decisivo para a retomada da análise da Lei da Anistia. Ele lembrou que o assunto estava estagnado há anos. A denúncia criminal que ele apresentou em 2014 contra cinco antigos membros do sistema repressivo da ditadura militar, acusados de assassinato e ocultação do corpo de Rubens Paiva, teve sua tramitação interrompida por uma decisão do STF em 2014 que alegou violação da Lei da Anistia.
A Lei de Anistia, promulgada em 1979, tem defensores que argumentam que sua adoção foi vital para a pacificação nacional e para o retorno à democracia. Eles afirmam que a lei perdoou ações de ambos os lados – tanto de agentes do regime militar quanto de opositores que também cometeram crimes. Entretanto, essa lei exclui os militantes que já foram condenados por crimes de terrorismo e outros delitos graves.
Além do filme, outros fatores contemporâneos, como os eventos de 8 de janeiro de 2023, onde bolsonaristas invadiram as sedes do Três Poderes em protesto, também são considerados por juristas como catalisadores para a atualização dessa discussão. Uma série de condenações severas por essas ações exacerbou o debate sobre questões de justiça e impunidade relacionadas a crimes do passado.
José Carlos Moreira Filho, professor de Direito, ressaltou que os recentes eventos e o crescente interesse popular no filme criaram um ambiente propício para o reexame de casos arquivados durante tanto tempo. Marlon Alberto Weichert, procurador da República, acrescentou que o longa-metragem trouxe à tona uma nova onda de discussões sobre o tema, evidenciando que a crise democrática atual reforça a necessidade de abordar as questões não resolvidas dos crimes da ditadura.
Atualmente, há mais de cinquenta casos congelados pela Lei da Anistia que poderiam ser profundamente afetados por uma possível revisão do STF. Muitos dos acusados, no entanto, possivelmente já faleceram, o que poderá levar ao arquivamento definitivo de alguns processos.
Os recursos que estão sendo analisados sustentam que a Constituição e tratados internacionais firmados pelo Brasil não permitem a anistia de crimes graves contra os direitos humanos perpetuados por agentes estatais. Um dos argumentos centrais é que a anistia não deveria abranger crimes contínuos, como os desaparecimentos, caso de Rubens Paiva.
Na última sexta-feira (14/02), o STF começou a deliberação em plenário virtual sobre três recursos coletivos. Além do caso de Paiva, estão em análise processos relacionados às mortes de Mário Alves de Souza Vieira e Helber José Gomes Goulart, ambos também ligados à repressão militar. Até o momento, quatro ministros do STF se manifestaram a favor da repercussão geral desses casos.
Outro julgamento relevante sobre a Lei da Anistia foi iniciado em 7 de fevereiro e concluiu-se também recentemente. Esse caso objetiva permitir a ação criminal contra responsáveis pelo desaparecimento de guerrilheiros no período da ditadura, com dez ministros já se posicionando favoravelmente à repercussão geral de um recurso acerca desse tema.
Ainda não houve uma avaliação sobre o mérito da questão, mas as ações que pertencerão à disputa poderão ser julgadas em conjunto com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), proposta pelo PSOL em 2014 que questiona de maneira mais ampla a própria Lei da Anistia.
Por fim, a discussão ainda deve evoluir, sendo que o STF tentará alinhar a legislação nacional com a visão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem identificado a Lei da Anistia como um entrave para a busca de justiça por crimes históricos.
As opiniões divergem, e o advogado dos acusados de Rubens Paiva, Rodrigo Roca, critica a ideia de tratar os atos da ditadura como crimes contra a humanidade, argumentando que tais atos não se enquadrariam nas definições legais adequadas. Para ele, essa reavaliação serve apenas a interesses políticos.
O futuro da interação entre o sistema de Justiça brasileiro e a história da ditadura militar é incerto, mas os recentes acontecimentos e o impacto de obras artísticas como Ainda Estou Aqui sugerem que o debate está longe de ser encerrado.