O documentário Black Box Diaries, de Shiori Ito, foi um dos selecionados para concorrer ao Oscar deste ano. Embora a estatueta tenha sido concedida a No Other Land, a obra impactante de Ito deixou uma forte impressão em muitos espectadores. No entanto, a produção enfrenta sérias dificuldades para ser lançada em seu país de origem.
Quatro Anos em Busca de Justiça
Com uma duração de pouco mais de uma hora e meia, o filme documenta a investigação de Ito sobre a violência sexual que ela mesma sofreu em 2015, quando tinha 25 anos e era estagiária na Thomson Reuters. Durante uma reunião de trabalho, ela se encontrou com Noriyuki Yamaguchi, chefe do escritório de Washington DC do Tokyo Broadcasting System. Um jantar que deveria ser profissional se transformou em um verdadeiro pesadelo, quando Ito perdeu a consciência e acordou amarrada em uma cama de hotel.
A vítima denunciou o crime, mas afirma ter sido desencorajada pela polícia a registrar um boletim de ocorrência. Ela foi forçada a passar por uma recriação angustiante da agressão. Apesar de mandados de prisão terem sido emitidos, Yamaguchi nunca foi detido, e o caso foi prontamente arquivado sem explicações, possivelmente devido à posição de destaque de Yamaguchi como um alto executivo de mídia e suas relações próximas com o ex-primeiro-ministro Shinzo Abe.
Determinado a não desistir, Ito tornou seu relato público em maio de 2017, enfrentando reações adversas em um país onde discutir violência sexual é um grande tabu. A sociedade a questionava sobre a veracidade de suas alegações, incluindo perguntas constrangedoras sobre o tipo de roupa que usava na ocasião.
Em 2019, Ito ganhou um processo civil, o que levou os juízes a determinar que a relação foi feita “sem consentimento, com a Sra. Ito inconsciente e em estado de intoxicação”. Como resultado, Yamaguchi foi condenado a indenizá-la em ¥ 3,3 milhões (aproximadamente R$ 130 mil). A partir desse episódio, Shiori Ito se tornou um símbolo do movimento #MeToo no Japão.
Uma Narrativa Reconhecida Globalmente, Mas Silenciada em Casa
Com uma produção intimista, quase como um diário, o documentário mostra cenas em que Ito se dirige diretamente à câmera, enquanto retrata sua vida cotidiana e o difícil processo judicial que atravessou. A obra apresenta momentos pesados, com alguns entrevistados abordando o caso com hostilidade, além de capturar a vulnerabilidade de Ito em várias ocasiões.
Ainda assim, mesmo com críticas positivas e uma temática relevante, a exibição do documentário no Japão tem sido problemática. Entender as razões dessa resistência se torna claro ao observar como a produção critica o sistema judiciário local e destaca reações misóginas presentes na sociedade.
Atualmente, o tema da violência sexual é raramente abordado no Japão, e este caso ganhou grande notoriedade por ser um dos primeiros a atrair ampla atenção. Isso leva à preocupação de que outras vítimas possam ser desencorajadas a registrar queixas na polícia.
Em declarações ao Japan Times, Eric Nyari, produtor do documentário, afirmou que esse ressentimento se dá também porque muitos japoneses ainda veem Ito como uma estranha. Portanto, o documentário é interpretado como uma crítica externa ao sistema, em vez de uma reclamação de alguém que vive naquele contexto.
“Ela (Shiori) cresceu como uma estranha nesta sociedade. Apesar de ser japonesa, desde cedo desejava viajar para o exterior e foi influenciada por perspectivas internacionais”, destacou Nyari. Isso possibilita uma visão diferente sobre questões como violência sexual e as instituições que a cercam.
Esse cinismo crescente em torno de seu caso torna ainda mais desafiador para Ito reconectar-se com sua terra natal. A cineasta cancelou recentemente uma exibição do documentário em Tóquio, justificando “problemas de saúde”. Algumas semanas atrás, pediu desculpas publicamente por usar declarações em sua filmagem sem autorização, sendo criticada por ex-advogados. Ela anunciou que irá editar o filme para omitir essas identidades, enquanto Nyari defende que todas as imagens são essenciais para comunicar o caso e o interesse público.
Mesmo após sua exibição no Oscar e estreias internacionais, a produção ainda não tem data definida de lançamento no Japão. Legalmente, não há impeditivos para a exibição, mas distribuidoras de cinema hesitam em se envolver, em grande parte devido à confusão relacionada a ex-aliados de Ito. Como observou Nyari, as empresas que possuem cinemas frequentemente também possuem hotéis, o que torna o caso ainda mais delicado, já que o crime ocorreu em um desses estabelecimentos. A cineasta acredita que, em geral, os distribuidores preferem evitar polêmicas.